domingo, 11 de setembro de 2011

Comércio Justo

Nas últimas semanas, grande grifes nacionais e internacionais, como Zara, Billabong, Ecko, Gregory, Brooksfield, Cobra d'Água e Tyrol, foram notícia em todos os meios de comunicação devido a denuncias de exploração de mão-de-obra escrava no interior de São Paulo.
Os trabalhadores-escravos eram, em sua maioria, recrutados na Bolívia com promessas de melhores condições de vida no Brasil. Porém, ao chegarem a São Paulo, eram obrigados a cumprir jornadas de 16 horas de trabalho e recebiam apenas R$ 2,00 por peça produzida Além disso, os empregadores descontavam do salário dos trabalhadores o custo da viagem até ao Brasil e a comida.
Agora, as grifes estão sendo investigadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e serão alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Além disso, as marcas sofreram forte repressão dos consumidores, especialmente nas redes sociais, e chegaram a ver suas ações caírem no mercado internacional.
Apesar dessa realidade, uma vertente do comércio já caminha para uma relação mais justa e sustentável ao longo de toda a cadeia produtiva. Para entender melhor como esse modelo funciona, bem como os benefícios e desafios desse setor, o Portal EcoDesenvolvimento.org conversou com a presidente da Organização Mundial de Comércio Justo na América Latina (WFTO), Ana Asti.


Qual a principal diferença entre o comércio tradicional e o comércio justo?
O comércio justo é baseado em uma série de princípios que buscam a justiça na cadeia produtiva, ou seja, criar uma cadeia produtiva que gere uma relação de ganha-ganha entre todos os elos que fazem parte dela, especialmente o pequeno produtor. É um comércio onde paga-se um preço justo pela produção desse pequeno produtor, seja ele um artesão ou um produtor rural, onde se tem igualdade entre homem e mulher, existe um trabalho de transparência, tem a questão da sustentabilidade, do meio ambiente, não existe o trabalho infantil, existem boas condições de trabalho. São dez princípios que regem uma relação comercial mais justa, esse é o principal objetivo do comércio justo.
E, por trás disso, existe uma certificação, um selo para aqueles produtores ou comerciantes que seguem o comércio justo e lançam seus produtos no mercado. Eles podem buscar um processo de certificação, onde existe uma auditoria que avalia a relação comercial, e recebem um selo, que vai ser colocado na embalagem do produto e o consumidor, através desse selo, identificar se aquele produto é de comércio justo.

Como o comércio justo impacta a cadeia produtiva e de consumo?
O comércio justo trabalha com a ideia da rastreabilidade da cadeia produtiva. Você trabalha esses princípios, seja ele com o produtor, que é o principal beneficiado, ou também com as indústrias que fazem o beneficiamento daquela matéria-prima ou daquele insumo que foi produzido. Aí segue, por exemplo, na área internacional para o regulamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Eu posso ter um algodão que é produzido na África por uma cooperativa de produtores dentro de uma ótica do comércio justo, certificada. Só que para esse algodão virar uma camiseta ou uma meia, ele precisa ser industrializado e essa indústria tem que estar totalmente ok com a questão da responsabilidade social, seguindo a legislação local, assim como as normas da OIT, até que esse produto chegue ao ponto de venda final. Um exemplo são as empresas na Europa que comercializam roupas com o selo de comércio justo. Isso significa que não só o produtor teve benefício com isso, como toda a cadeia produtiva.

As notícias recentes sobre casos de trabalho escravo em grandes empresas chocaram muitos consumidores, afinal estamos no século 21 e supomos que esse tipo de prática não exista mais. Essa ainda é uma realidade comum?
Sim, na verdade existe muito ainda. Sempre que a gente ouve falar em trabalho escravo lembra direto da China, mas a Zara acabou de comprovar que a gente não precisa ir longe, que isso existe aqui, dentro da nossa casa. O caso da Zara foi com bolivianos. Mas existem casos de Brasil com Brasil, empresas brasileiras praticando a lógica do trabalho escravo com trabalhadores brasileiros. Aqui mesmo no Rio de Janeiro, na cidade de Petrópolis, você vê costureiras trabalhando de maneira informal nas suas casas, subcontratadas por atravessadores que são contratados pelas grandes marcas, e esses costureiros recebem R$ 0,30, R$ 0,50 para fechar uma camiseta.
Pelas contas que a gente fez, quando fomos avaliar o preço justo desse serviço, isso não banca nem o óleo e a linha que ela utiliza, quiçá a mão-de-obra e o tempo da costureira. Então, essas pessoas trabalham 14, 16 horas por dia para conseguir, no final do mês, garantir um recurso fixo que pelo menos banque as despesas de produção. Normalmente, elas acabam buscando agiotas para conseguir recursos para comprar material para produzir porque as grandes marcas geralmente pagam com 30, 60 ou 90 dias e elas não conseguem comprar à prazo.
Além de trabalhar o dobro do permitido pela legislação, elas não têm nenhum tipo de segurança social e vivem sempre endividadas, pagando dívidas e juros. Eu já vi várias vezes situações de pequenos ateliês de costura que pagavam 20% ao mês para agiotas, que geralmente são contatos do atravessador contratado das grandes empresas que comercializam nos shoppings centers. É um ciclo muito destrutivo, ao contrário do comércio justo, que é a lógica do ganha-ganha. Não é assistencialismo, é ter um trabalho justo, o mínimo que a gente pode querer para nossa sociedade.

O que é levado em consideração na hora de calcular um valor de um produto ou serviço dentro das premissas do comércio justo?
É um cálculo muito simples, como qualquer cálculo de preço. Você coloca todos os custos de produção (sejam eles custos fixos ou variáveis), mas é quando se calcula o valor da mão-de-obra que entra o grande problema da exploração do trabalho. Paga-se valores muito abaixo do que deveria ser o mínimo, muitas vezes abaixo do próprio salário mínimo do país.
Em algumas cadeias produtivas existem sindicatos que regem, inclusive, salários mínimos. Quando não tem, trabalha-se em cima do valor estabelecido pela legislação, que muitas vezes nem paga os custos de produção, não chega nem a pagar um valor ínfimo que seja da mão-de-obra dessas pessoas.
Outra coisa que tem que ser levada em consideração é o custo de vida no local que, muitas vezes, na cidade pequena é diferente da cidade grande. Isso tem que ser levado em conta na hora de definir qual o valor de mão-de-obra que vai garantir uma qualidade de vida para aquela pessoa. Isso que é importante: você chegar a um preço que garanta a qualidade de vida para um produtor.

Apesar dessa realidade, muitas empresas já estão migrando para o comércio justo. Quais as principais vantagens e desafios da empresa que decidir fazer isso?
O principal desafio é a própria cultura interna da empresa, porque o comércio justo exige que a empresa olhe para dentro da própria cadeia produtiva e reavalie a forma como ela vem trabalhando. O principal desafio é essa mudança para uma cultura que seja de parceria, e não de exploração.
O comércio justo só existe quando a cadeia produtiva trabalha em parceria – um trabalha para beneficiar o outro e assim sucessivamente. A gente vem de uma cultura que é justamente o oposto: a gente faz o máximo que pode para aumentar o lucro, só que muitas vezes o lucro vem de ter um parceiro melhor, que melhore sua produção, seu volume e participação no mercado.

Esse modelo de comércio é uma tendência para o futuro?
Com certeza. Isso é muito claro quando a gente pega as estatísticas do comércio justo do exterior. Isso começou na Europa na década de 1960 e hoje já estamos falando de mais de 60 mil pontos de venda, um mercado de mais de 3,5 bilhões de euros, que vem crescendo a um ritmo de 30% ao ano – especialmente na área de alimentos. É uma tendência muito forte que vem mantendo um crescimento estável, especialmente nesses últimos dez anos, quando os produtos alcançaram de fato os supermercados.
Isso no Brasil ainda é muito recente, existe pouca informação, não existe um consumidor que conhece o comércio justo e demanda isso na prateleira do supermercado, por isso que para a gente ainda não é um mercado claro. Mas outros países, tanto da Europa quanto Estados Unidos, Austrália e até Nova Zelândia, tem tido um crescimento muito grande, porque o consumidor já identifica.
Uma pesquisa feita há cinco anos por uma organização chamada Artesãs do Mundo, da França, já colocava que mais de 73% da população francesa já tinha ouvido falar em comercio justo, e mais de 50% já tinha comprado pelo menos uma vez esses produtos. Então, o que já faz parte da vida de mercado desses países, infelizmente ainda não faz parte da nossa.

O que precisa então ser feito para que esses consumidores mudem suas perspectivas e, consequentemente, influenciem o mercado?
Eu acho que falta estrutura. É aquela velha pergunta: "O que vem primeiro, o ovo ou a galinha?" O produto para ser comprado ou o consumidor para de demandar aquele produto? A gente não tem nem o consumidor que sabe que pode optar por um produto desses, assim como não temos ainda estruturas para produtos certificados. O produto precisa chegar à prateleira e o consumidor precisa saber que ele existe.
Acho que não é nem uma questão de mudar o consumidor, mas de ter a consciência de que ele pode comprar esse produto, olhar a embalagem, procurar o selinho, ler o rótulo para saber se vem de uma cooperativa ou associação, esse é o maior desafio: promover essa história, divulgar o comércio justo, viabilizar que exista uma estrutura de distribuição e consumo no país.

Apesar desses desafios, você acha que o consumidor está mais consciente? No caso da Zara, por exemplo, acha que o impacto da notícia vai chega às vendas da empresa?
Acho que sim, acho até que está tendo um escarcéu maior em torno disso. Toda essa cadeia produtiva que a gente observa é muito frágil em relação ao valor humano. Há uns dias recebi um e-mail de um grupo de consumidores organizados iniciando um boicote à Zara e fique super feliz, não pela empresa, claro, mas por haver um grupo de consumidores se organizando, mesmo que de maneira muito informal, para boicotar esse tipo de ação.
É uma forma de o consumidor dizer “basta”, e isso é muito importante porque o consumidor é o principal ator dessa cadeia produtiva, as empresas produzem o que o consumidor quer comprar. Seja por uma qualidade tangível, como o design ou a cor de um produto, até por uma qualidade intangível, como o fato do produto ser sustentável, respeitar a mão-de-obra, coisas que hoje são observadas pelo consumidor e antes não era tanto.
A lógica do boicote a grandes empresas já existe há muito tempo na Europa, como o que foi feito há tempos à Danone, que estava trabalhando de forma errada a questão da água, ou à Nike, que teve aquele problema com trabalho escravo na China, e outros tantos que acontecem o tempo todo, mas que a gente ainda não viu de forma muito forte no Brasil.
Mas só de já estar se organizando pela internet, que é um meio muito rápido, e de esse tipo de proposta estar chegando às pessoas, eu acho que já é um sinal muito positivo de que a gente já está ficando mais consciente de que podemos tomar essa decisão. O consumidor tem esse poder sim, basta ele estar organizado para fazer valer isso.

O mundo está passando por uma séria crise econômica, especialmente nos países mais desenvolvidos. Você enxerga isso como uma barreira ou uma oportunidade para o comércio justo?
Acho que tem as duas pontas. É uma oportunidade no sentido de que a gente observou, especialmente na Inglaterra, que é um país onde o comércio justo é mais avançado, consumidores que optaram por diminuir o seu consumo, mas manter o consumo de produtos de comércio justo porque sabiam que ali estavam garantindo a sustentabilidade do pequeno agricultor, que também acaba afetado pela crise internacional.
Observou-se que existiram muitos grupos de consumidores que fizeram esse esforço, tanto que o número de produtos de comércio justo se manteve numa crescente, mesmo em tempos de crise. Agora isso foi mais para alimentos, que são produtos de necessidade básica e giro maior.
Já produtos de valores maiores e menor necessidade, como artesanato, sofreram uma estagnação. As lojas especializadas em produtos de comércio justo na Europa viram que o crescimento que estava ocorrendo deu uma parada, porque são produtos que, em tempos de crise, não são uma prioridade.


Fonte: http://www.ecodesenvolvimento.org.br/posts/2011/agosto/presidente-da-wfto-na-al-conversa-sobre-desafios-e